Você sabe o que é feijão das águas?
O nome tem relação direta com a época do plantio. O feijão pode ser plantado em três períodos distintos: nas águas, na seca e no inverno. O feijão das águas é plantado em setembro, outubro e novembro. O feijão da seca é plantado em janeiro, fevereiro e março. O feijão do inverno é plantado em maio, junho e julho, mas a cultura precisa ser irrigada, o que é uma desvantagem. O ciclo curto, de 80 a 100 dias, permite plantios diversos durante o ano.
Fiquei sabendo disso após ler um artigo que minha amiga Hila Flávia publicou no Alma Carioca, um blog de literatura que reúne nossos amigos escritores. Se você não conhece e gosta de ler e escrever, não deixe de fazer uma visita.
Mas, voltando ao assunto, vale a pena ler o texto escrito pela Hila, autêntica brasileira das Minas Gerais, amante do Brasil, sua terra e sua gente.
O feijão das águas – Hila Flávia
Tenho o maior respeito pelo feijão. Primeiro porque gosto muito dele e, segundo, porque o trabalho que dá para produzi-lo é desconhecido pela maioria das pessoas. Pessoal de cidade pode até pensar que ele vem ensacado e limpinho, pronto para ser colocado na panela.
Mas, agora que as chuvas voltaram, é hora de plantar o feijão das águas. O mais macio, o mais problemático, mas o de maior adrenalina. Penso que a aflição de vigiar sol/chuva/sereno/garoa/vento é que o faz tão mais popular que o feijão da seca, que mais se planta nas terras das multinacionais que cuidam do setor alimentício do país.
O feijão das águas tem seus adeptos e, entre eles, o pessoal do meu povoado. Todos entram na dança e, em dois lotes de mil metros quadrados cada, costuma-se colher para o consumo anual de uma família grande. E tudo segue um ritual. Vamos destrinçar a adrenalina:
Primeiramente limpar a terra, tirando pedras, tocos, matinhos, torrões, deixando tudo bem limpo. Depois é bom jogar um calcário e misturar bem. Fofada a terra, é hora de pegar a matraca e colocar um ou dois grãos de feijão, já escolhidos da colheita do ano anterior, em cada cova, distando uns trinta centímetros uma da outra e fechando a cova com o pé. Fazer fileiras organizadas para facilitar a limpeza entre os pés, que deve ser feita durante mais ou menos sessenta dias, conforme a chuva. Se chover e fazer sol, chover e fazer sol, fica bom demais o crescimento das mudas. Até esse estágio, é muito fácil o processo. Foi só preparar a terra, jogar calcário, plantar, limpar em torno dos pés de feijão e aguardar a chuva e sol fazerem seu papel.
Agora, começa o batente pesado. Há de se contar com a boa vontade do tempo para, num dia de sol quente, maduro o feijão, arrancar os pés todos da terra. Levar para um local seco e esperar que os pés fiquem bem sequinhos. Nessa hora, podem-se escolher dois procedimentos: ou se bate nos pés ou batem-se os pés de feijão no chão, numa surra de criar bicho. Tenho amigos que penduram a coitadinha da rama no teto e dão umas pauladas firmes nela. Para quê? Para que os grãos de feijão se soltem de suas casas. São despejados a pauladas.
Caídos os grãos pelo chão, é hora de ajuntá-los e jogar as ramas fora, dando-lhes o destino de uma compostagem ou de voltar a fazer parte da natureza na companhia de outros matos. E os grãos? Esses têm que secar. Então, começa a sanfona: colocar os grãos no sol, tirar os grãos do sereno, colocar os grãos no solo, correr se ameaça chuva, colocar os grãos dentro da varanda e vigiar para não respingar água neles, colocar os grãos a salvo. Nem sol rachando, nem chuva melada. Tudo no justo meio termo. Que dia é melhor dia para secar o feijão? Pode ser dia de uma festa. Então, em vez de festa, secar feijão. Pode ser dia da missa. Então, em vez de missa, secar feijão. Pode ser o que for, o feijão está na ordem do dia. E o que se ouve? Impropérios variados que não vou repetir aqui, mas coisas do tipo: … de chuva! Ou … de sol! Ou … de sereno! Ou … de umidade! E aquilo ou aquiloutro. Um tempo grande de xingatórios variados por todo lado. Parece que no povoado não existe outro assunto. Feijão, feijão, feijão. Era só feijão, feijão (já cantava o sabedor da colheita).
Um belo dia, eis que o feijão seca completamente e as mulheres dão graças a Deus, pois suas varandas e até salas foram atapetadas com os preciosos grãos. E agora?
Agora vamos limpar os grãos de folhas e gravetinhos. É preciso chamar o vento. Ô vento, vem ajudar. Pois só ventando podem-se colocar os grãos numa peneira e jogar contra a ventania. Os grãos vão e as folhas vêm, bem em cima da gente. Óculos são imprescindíveis. Já levei muita lasquinha de graveto no olho e doeu demais. Aquietado o material precioso, retirar as pedrinhas, que ficam juntas e também têm seu peso, e colocar o feijão no saco.
Posso deixar os grãos de feijão num saco um ano inteiro? Nada disso. Os bichinhos vão fazer a festa. Carunchos e companhia limitada. Eu enlitro os grãos. Quando há negócio com o feijão, a primeira pergunta é: está enlitrado? A segunda nem se faz, pois todos sabem da inexistência de todo e qualquer agrotóxico. O enlitramento é feito usando garrafas PET previamente lavadas e bem secas. São colocadas de cabeça para baixo num tapete de espetinhos de bambu para secar bem. Depois, usando um funil feito de outra garrafa cortada ao meio, os grãos vão se ajeitando até ficar a garrafa completamente cheia. Bater no chão para tirar o ar é bom também. Por cima de tudo, antes de colocar a tampa e fechar bem, um grão de pimenta do reino. Espanta bicho invasor.
Dessa forma, o feijão dura um ano certinho. E fica tão macio que nem precisa da famigerada panela de pressão, aquele instrumental perigoso. Aqui em casa, há tempo, explodiu uma que danificou várias coisas, inclusive o fogão e sujou o teto inteirinho. Foi um barulho de bomba terrorista. Pensamos que o prédio estava vindo abaixo. Depois disso, ficou terminantemente proibida sua existência na cozinha. Depois do nosso estouro, fiquei sabendo de muitos casos que deixaram até gente ferida gravemente. É só colocar esse feijão macio de molho na água umas horas e cozinhar em panela comum mesmo.
É tão diferente o gosto do nosso feijão que minha amada e saudosa mãe notava quando ele acabava antes da hora e eu comprava um já pronto. Ela dizia: este feijão não é dos nossos. E não era mesmo. E meus netos, por participarem de todo esse processo, são os maiores fãs de feijão que conheço. Uns meninos feijãozeiros.
Então, não é para se respeitar um alimento tão comentado? Os outros feijões, saídos da agricultura mecânica e tradicionalmente usada, com transgenia e tudo, nem sei o gosto que têm. Ah! Mas faz tempo que sequer tomo conhecimento deles.